1. A Teoria do choque de civilizações
Vamos estudar as origens, o contexto de surgimento e o significado da
regionalização do mundo, com base na teoria do “choque de civilizações” de
Samuel Huntington, criando uma visão crítica sobre seus fundamentos a partir de
outros autores, principalmente Edward Said, e por que a aceitação da visão de
Huntington representa certo reducionismo (reduzir os fenômenos) no entendimento
da geografia do mundo atual, em virtude de se desconsiderar fatores
geopolíticos, históricos, as disputas econômicas etc. A discussão sobre o
assunto será iniciada a partir de acontecimentos relevantes e recentes no
cenário mundial e, sem abandoná-los, estudaremos o paradigma (padrão) que modela
a política internacional de hoje, principalmente após o término da Guerra Fria
(1947-1991). Uma vez que pesquisadores considerem diferentes eventos como
delimitadores do período da Guerra Fria entre Estados Unidos (EUA) e União
Soviética (URSS), vale esclarecer que assumiremos aqui a aplicação da Doutrina
Truman pelos EUA, em 1947, como o início efetivo da guerra velada entre estas
duas superpotências, que perdurou até o fim da URSS, em dezembro de 1991.
Sua origem
Em um artigo intitulado “Choque de civilizações: na origem de um
conceito”, Alain Gresh explica que a idéia de “choque” foi freqüentemente
retomada para explicar os conflitos entre Ocidente e Oriente. Ainda em 1964,
Bernard Lewis, um professor universitário britânico pouco conhecido, lançou a
expressão que ficaria famosa. Se, por um lado, esta passou despercebida durante
a década de 1960, de outro foi relançada por ele vinte e cinco anos depois na
forma de um artigo, “As raízes da cólera muçulmana”. Gresh ressalta que:
“a visão
de um ‘choque de civilizações’, contrapondo duas entidades claramente
definidas, o ‘Islã’ e o ‘Ocidente’ (ou a civilização judeo-cristã’), está no
centro do pensamento de Bernard Lewis, um pensamento essencialista que
restringe os muçulmanos a uma cultura petrificada e eterna.”
GRESH,
Alain. Choque de civilizações: na origem de um conceito.
Edição
de setembro de 2004 do Le Monde Diplomatique.
Em 1993, Samuel P. Huntington, estrategista norte-americano, retomou a
fórmula do “choque de civilizações” num célebre artigo que escreveu para a
revista Foreign Affairs. O texto fez
tanto sucesso e despertou tanta polêmica que levou o seu autor a ampliá-lo e,
em 1996, Huntington publicou o livro Choque
de civilizações: e a recomposição da ordem mundial, publicado no Brasil no
ano seguinte.
O contexto geopolítico em que surgiu e seu
significado
A expressão “choque de civilizações” adquiriu grande repercussão no
contexto de incertezas da nova ordem mundial, logo após o fim da Guerra Fria
(1947-1989), quando o mundo se deparou com a eclosão de conflitos isolados,
motivados por rivalidades étnico-religiosas e culturais, contidos em sua grande
maioria por regimes totalitários, como na ex-União Soviética e na antiga
Iugoslávia. O tema é bastante atual, a maioria das guerras ocorre entre povos
de civilizações diferentes, por exemplo, o conflito Israel-Palestina, as
Guerras do Golfo, a desintegração iugoslava, a instabilidade na Caxemira, a
luta pela independência na Chechênia ou mesmo a atual presença anglo-americana
no Iraque.
O postulado (princípio não demonstrado de um argumento ou teoria) de
Samuel P. Huntington, na obra indicada acima, constitui um esforço de
compreensão do mundo e do novo quadro das relações internacionais emergente da
implosão soviética, depois que as tensões políticas da velha ordem bipolar
deixaram de subordinar um ou outro bloco ideológico. O autor propôs o paradigma
civilizacional como modelo, assumindo que são as várias identidades culturais
do mundo que modelam as coesões, as desintegrações e os conflitos numa nova
ordem mundial Pós-Guerra Fria, onde, inclusive, Estados se aliam, ou não, em
função dos sentimentos de pertencimento civilizacional. O cenário e a divisão
do mundo propostos por Huntington foram estabelecidos após o autor ter
analisado vários autores, entre os quais os historiadores Arnold J. Toynbee e
Fernand Braudel. Nesse trajeto, há muitos pontos que Huntington não aborda ou
apenas levanta de passagem, como é o caso da questão se os judeus seriam ou não
uma civilização. Segundo ele, o mundo está dividido em nove “civilizações”:
ocidental, africana, islâmica, sínica, hindu, ortodoxa, japonesa, budista e
latino-americana. Defende-se nela que o futuro da humanidade poderá ser
determinado pelo confronto entre diferentes civilizações, a partir da adesão a
religiões e características culturais comuns. O ideal seria que cada
civilização principal tivesse, pelo menos, um assento no Conselho de Segurança
das Nações Unidas, mas sabemos que apenas EUA, China, Rússia, França e
Inglaterra são membros permanentes do Conselho. Assim, concluímos que a divisão
de Huntington não é tão abrangente assim. Veja o mapa “A distribuição das
civilizações de acordo com Huntington”, na legenda estão as características de
cada civilização
Edward
Said, crítico literário e ativista da causa palestina, interpretou a teoria de
Huntington como uma versão renovada da tese da Guerra Fria, pois entende que os
conflitos do mundo atual e do futuro continuarão a ser essencialmente
ideológicos, mais do que econômicos e sociais. Edward lembra que, a
argumentação de Huntington falha por tratar a cultura como algo monolítico
(único), imutável e homogêneo, ou seja, não considera as inquietações que
existem dentro de cada cultura e aponta que a tese do “choque de civilizações”
fundamenta-se na perspectiva de uma separação rigorosa entre diferentes
culturas, desconsiderando os diversos fluxos que caracterizam o mundo de hoje,
o que torna impossível, para qualquer cultura, manter-se completamente isolada
das outras (por exemplo, as migrações, as misturas e o intercâmbio de
culturas).
O paradigma (modelo) civilizacional
de Huntington não é verificável a ponto de considerarmos o melhor. Uma das
críticas, dirigidas à sua teoria, são as limitações quando contraposta à
realidade geopolítica mundial, expressando uma visão reducionista (reduzir os
fenômenos) diante das verdadeiras causas de muitos conflitos. Por exemplo, se
voltarmos ao início da década de 1990, para lembrar o caso do genocídio em
Ruanda entre hutus e tutsis, identificamos que eles são de grupos étnicos
diferentes na religião, mas que pertencem, para Huntington, à “unidade cultural
africana”, cujo confronto resultou na morte de 1 milhão de africanos numa
guerra considerada como a maior catástrofe humanitária acontecida após a queda
do Muro de Berlim (1989). Exemplificar a conflitualidade por intermédio do
critério civilizacional ou religioso representa, muitas vezes, colocar em
segundo plano os interesses mais ou menos legítimos dos atores internacionais,
correndo-se o risco de certo reducionismo no entendimento da geografia do mundo
atual em virtude de se desconsiderar fatores geopolíticos, históricos, as
disputas econômicas etc.
Outros especialistas não concordam com a tese de Huntington, além de
Edward, como Noam Chomsky, John Espósito, entre outros, que vinculam os
conflitos à imposição de um modelo geopolítico e econômico controlado pelos
países ricos e suas corporações. A identificação civil ou religiosa entre os
povos não se verifica como o fator-chave de todos os conflitos no mundo atual.
Além dos conflitos das fronteiras do mundo, temos as tensões político-militares
entre Estados, grupos e nações a partir do conhecimento da geografia dos
recursos vitais. Por exemplo, a disputa pelo máximo de controle do petróleo (um
recurso vital), no Iraque, pelos norte-americanos; o caso dos Montes ou Colinas
de Golã, assegurado pelos israelitas para garantir o fornecimento de água – um
problema crônico em Israel – é um planalto inabitável,
constantemente coberto de gelo, que serve de fronteira natural entre os países
árabes: Líbano, Jordânia e Síria.
Veja aqui a corajosa entrevista da Drª Wafa Sultan, Psicóloga Árabe-Americana no programa de entrevista da TV Al-Jazeera. Ela aborda o choque de civilizações do Islã radical contra o Ocidente.
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